
Não, espera: não é bem assim. Na véspera da publicação do tema do Enem, foi registrada uma confusão no “Campestre Clube” da cidade de Sousa, no Sertão da Paraíba. De acordo com informações de populares, duas crianças com idades entre 5 e 7 anos, teriam brigado enquanto brincavam no clube. Até aí, tudo bem, tudo normal, pois briga entre crianças faz parte do repertório de história de cada um de nós. Acontece que uma das crianças era filha de um Promotor de Justiça, que foi tomar satisfação com a família da outra criança. Mais ainda, tudo foi filmado e lançado no YouTube: o vídeo mostra o bate-boca entre o promotor e a mãe da outra criança; mostra também várias pessoas tentando acalmar a autoridade da justiça, que não cedeu aos apelos e prosseguiu com as ameaças. “Se ele bater no meu filho, como ele fez, eu bato nele, bato no pai dele, bato até na raça todinha”, disparou o promotor, que ameaçou chamar a polícia para resolver o assunto. A discussão se tornou ainda mais acalorada e os ânimos se exaltaram a ponto de o promotor tentar impedir que um homem continuasse a gravar a cena com um aparelho celular.
Após o incidente, a Associação Paraibana do Ministério Público emitiu uma nota de esclarecimento sobre o ocorrido, onde defende de forma veemente seu associado, dizendo tratar-se apenas de um caso isolado e que o promotor sempre prestou relevantes serviços à sociedade local – ao mesmo tempo justificou que a autoridade em questão não apresentou-se como Promotor na discussão (será que precisava, em se tratando de uma cidade interiorana, onde todos se conhecem?) Acerca da ameaça verbal dirigida contra a criança, a APMP quedou-se muda.
Mas meu domingo não seria estragado apenas por esse episódio lamentável. À tarde, uma amiga que é pedagoga, alertou para o que aconteceu na edição desse ano do Teleton; de início falei que não iria ver o tal vídeo, pois faz tempo que deixei de assistir qualquer coisa que venha das TVs abertas. Diante da insistência de minha amiga, mas ainda relutante, assisti o mais-do-mesmo de um Sílvio Santos grosseiro e ultrapassado – e que ainda não entendeu que o Brasil saiu dos anos 1970 faz tempo, muito tempo. Porém, no programa de sábado, o homem do baú fez uma declaração que dividiu opiniões nas redes sociais. Ao perguntar às crianças que estavam no palco o que elas queriam ser quando adultas, Julia Oliver, atriz negra da novela “Chiquititas”, disse: “Eu quero ser ou atriz ou cantora”. “Mas com esse cabelo?”, devolveu o dono do Baú. “Mas como assim?”, reagiu a menina, surpresa. Silvio então deu uma gargalhada e fez a mesma pergunta a outra atriz. No entanto, sua afirmação deu o que falar: enquanto a maioria dos internautas defendia o apresentador, afirmando que se tratava apenas de uma “brincadeira”, como tantas outras feitas no palco, outras pessoas criticaram sua postura, alegando que o comentário havia sido racista e preconceituoso, não achando a brincadeira nada engraçada.
Mas eu não estou aqui para julgar as atitudes de ambos, eu que não sou juíza sequer dos meus próprios atos. Eles são adultos, vacinados e poderosos, eles que busquem fazer suas retratações – ou finjam-se de mortos. Enquanto advogada e jornalista, porém, sou praticamente obrigada a ajudar na reflexão que se faz necessária nesse momento em que há um nítido divisor de águas institucional no trato com a criança, ao passo que a sociedade não progrediu até esse ponto; se alguém duvida do que eu digo, basta conversar com qualquer transeunte sobre o que ele ou ela acha do ECA e verá que não estou exagerando. A maioria dos brasileiros, alimentada pelo discurso infame dos apresentadores de programas estilo “sangue e muita bala” da grande mídia, acredita que a legislação protege “esses trombadinhas” enquanto o “cidadão de bem” fica a mercê dos “bandidos de menor”.
Eliane Araque dos Santos, Procuradora do Ministério Público do Trabalho, sintetizou muito bem o que tento explicar: “Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, sujeitos especiais porque pessoas em desenvolvimento. O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, a serem protegidos pelo Estado, pela sociedade e pela família com prioridade absoluta, como expresso no art. 227, da Constituição Federal, implica a compreensão de que a expressão de todo o seu potencial quando pessoas adultas, maduras, tem como precondição absoluta o atendimento de suas necessidades enquanto pessoas em desenvolvimento”.
Para conseguir cumprir o texto constitucional, portanto, ao Estado é necessário propiciar políticas públicas necessárias para que o desenvolvimento de crianças e adolescentes se faça de forma plena. Além disso, a ação estatal tem de ser permanente, com recursos garantidos no orçamento público para a sua realização. Sem essa ação contínua e crescente não há como garantir os direitos inscritos constitucionalmente e, em decorrência, a proteção integral prevista, com a prioridade requerida. Tudo isso em uma sociedade que permite e acha normal um adulto ameaçar dar uma surra em uma criança ou um famoso apresentador de TV constranger uma menina por causa do seu cabelo.
Infelizmente, é assim que acontece no Brasil: quando se fala nos direitos da criança e do adolescente, projeta-se no imaginário da população a ideia do menor infrator, nas atrocidades que esses menores podem cometer e que alguns, infelizmente, cometem. No entanto, o direito voltado para o menor, em especial o ECA, é bem maior do que o que se pensa, e pode ser sintetizado na frase magistral de Pitágoras: Educai as crianças, para que não seja necessário punir os adultos. Essa máxima precisa ser pensada e vivenciada, para que possamos ter a perspectiva de crianças e adolescentes como sendo verdadeiros sujeitos de direitos no futuro do nosso país.
Eu digo isso porque, no Brasil, criança e adolescente são pensados pela maioria – do apresentador de TV, à grande parte das autoridades e do povo em geral, como o era na Roma Antiga, onde os filhos não eram considerados sujeitos de direito, mas objeto de relações jurídicas, sendo que o pater exercia um direito de proprietário, decidindo sobre a vida ou a morte de seus filhos. Em nosso país, não é muito diferente da Roma Antiga: através da violência explícita e da violência enrustida no discurso e nas ameaças de cada um de nós, crianças e adolescentes são sujeitos de direitos apenas no papel, já que nós, sociedade, decidimos quem deve bater e quem deve apanhar; decidimos quem viver e quem deixar morrer.
Picuí do Seridó, madrugada do dia 10 de novembro de 2014.
* Fabiana Agra é advogada, jornalista e tem muito orgulho do seu cabelo pixaim.